segunda-feira, 13 de julho de 2009

Pais de coração

Pais de coração

por Ana Pago

O acolhimento temporário garante aos menores em risco um ambiente familiar que lhes sirva de referência quando a família natural não tem condições para lhes dar. E por temporário entende-se que a família não os deu para adopção e pretende reavê-los, como aconteceu com os casos mediáticos de Esmeralda e Alexandra. As histórias de lutas de mães e pais biológicos na justiça não têm fim. Que o diga Ana Rita Leonardo, a mãe de Martim.

O MENINO é ainda demasiado pequeno para saber que vive em terra de ninguém: tem dois anos e não imagina que sobre ele se decidiu que seria dado para adopção. A mãe adolescente, Ana Rita Leonardo, mudou-se para a porta do Tribunal de Família de Cascais com a vontade acesa e esperança no coração. Fez greve de fome, interrompeu-a após ter sido ameaçada de internamento pela Comissão de Protecção de Menores e entregou, a 24 de Junho, um requerimento a pedir a reavaliação do caso de Martim, para que o filho possa ser entregue à família biológica.

O menino não sabe, mas a mãe de 15 anos quer segurá-lo nos braços e ser um dos exemplos bem sucedidos de pais que lutaram na justiça para reaver os filhos depois de intensas tempestades emocionais – e ganharam. A opinião pública que acompanha a situação espera para eles o mesmo final feliz, agora que uma decisão inédita do tribunal suspendeu temporariamente a adopção da criança e autorizou a mãe a voltar a ver o filho.

«AGORA está nas mãos da juíza e só espero que o Tribunal de Cascais seja compreensivo, que finalmente se sensibilize com o meu caso e, principalmente, que seja rápido», deseja todos os dias Ana Rita, fortalecida com as demonstrações de afecto que lhe vão chegando nestas horas de indefinição.

Na memória recente, o desfecho da história de Alexandra, a menina de seis anos filha de uma imigrante russa que acaba de voltar ao seu país, sugere que a justiça privilegia, sempre que possível, a biologia face aos afectos: uma família de Barcelos criou a menina desde os dois anos devido à manifesta falta de capacidade de os pais cuidarem da criança e aos problemas de alcoolismo da mãe.

Alexandra viveu um amor «emprestado» durante quatro anos, mas ainda assim, aos seis, Natália Zarubina decidiu vir buscar a filha e levá-la para a Rússia, depois de uma decisão judicial de 2008 do Tribunal da Relação de Guimarães (confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça) ter determinado que Alexandra fosse devolvida à família biológica, por entre gritos e choro convulsivo, para ir viver com a mãe e a avó numa cidade a 350 quilómetros de Moscovo.

Imagens transmitidas pela estação televisiva NTV mostraram mais tarde a criança a dormir sobre um fogão e a levar bofetadas de Natália, que acusou o casal português de querer vender Alexandra para lhe «retirar órgãos ou até mandá-la para uma casa de prostituição», sem qualquer agradecimento pela educação dada à filha nos seus primeiros anos de vida. O juiz-relator que decidiu entregar a menina, Gouveia Barros, mostrou-se perturbado com o que viu, mas sustentou a medida com a falta de provas de que Natália era dependente do álcool e se prostituía, e com o facto de a lei defender a manutenção da mãe biológica com a criança.

TAMBÉM no polémico caso de Esmeralda – entregue com três meses pela mãe, Aidida Porto, ao casal Maria Adelina e Luís Manuel com uma declaração de «extinção das relações familiares» – o Tribunal da Relação de Coimbra reconheceu a legitimidade de os pais afectivos requererem a adopção da menina, mas entregou a custódia ao pai biológico, Baltazar Nunes. Quando este soube que Esmeralda era realmente sua filha, perfilhou a menor a 24 de Fevereiro de 2003 e, três dias depois, solicitou a regulação do poder paternal no Ministério Público da Sertã.

Após muita controvérsia, uma mediatização desregrada do caso e a disputa da menina pelas partes envolvidas, a 9 de Janeiro de 2009 o Tribunal de Torres Novas entregou definitivamente a custódia de Esmeralda ao pai biológico, fazendo cumprir uma decisão judicial de Julho de 2004 que já fora confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Findo o aparato, e ao mesmo tempo que se discute o sofrimento, as razões do coração e as mazelas com que a criança terá ficado no decorrer do processo, uma equipa de psicólogos ligados à mediação familiar afirma que a menina está «tranquila, segura e confiante» no seu novo agregado familiar composto pelo pai, Baltazar, a madrasta, Ilda Santos, e o filho dela, Ruben, «que lhe surge como elemento protector». Ao que tudo indica, Esmeralda está feliz.

SEGUNDO a lei de protecção de crianças e jovens em perigo, o acolhimento familiar consiste «na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família habilitadas para o efeito, visando a sua integração num meio familiar, a prestação de cuidados adequados ao seu bem-estar e a educação necessária a um desenvolvimento integral».

A medida tem sempre carácter temporário e visa evitar a sua «institucionalização» – entrega a uma instituição de acolhimento do tipo antigamente designado por orfanato – garantindo a estes menores em situação de risco um ambiente familiar que lhes sirva de referência quando a família natural não tem condições para desempenhar a sua função social e educativa. Nas situações em que a criança vai para acolhimento e não para adopção, tal significa que a família pretende manter os laços, o que normalmente quer dizer que vai querer recuperá-la mais cedo ou mais tarde.

O presidente do Instituto da Segurança Social, Edmundo Martinho, é o primeiro a reconhecer que em Portugal o tempo médio que uma criança fica entregue a uma família de acolhimento é demasiado longo (normalmente mais de dois anos), dificultando a separação na hora de os menores serem devolvidos à família biológica ou às instituições. Apesar de a medida estar ainda pouco desenvolvida no país como alternativa à institucionalização, em 2008 estavam entregues a famílias de acolhimento cerca de 918 mil crianças, muitas das quais sem terem definido um projecto de vida que lhes permitisse saber se o caminho era a adopção, o retorno aos pais ou outro.

«OS DOIS CASOS mais mediáticos, da Esmeralda e da Alexandra, não são casos de verdadeiro acolhimento porque passaram ao lado da segurança social, à margem da lei, e por isso se tornaram casos judiciais», explica Jorge Soares, um engenheiro informático de gestão que se tornou voz activa na problemática da adopção (integrou o grupo que organizou os dois primeiros encontros nacionais sobre o tema, ambos em Setúbal) precisamente por ser pai adoptivo, biológico e de novo candidato a adoptar.

«Ali, o que funcionou mal foram as pessoas, que subverteram todo o processo: no caso da Alexandra nunca existiu abandono, vi a entrevista que a família deu à RTP e o que foi dito mostrou que a mãe esteve sempre presente, apesar de tudo.» No caso de Esmeralda existiram várias decisões dos tribunais (a primeira quando ela tinha apenas oito meses), mas o casal tentou por todos os meios contrariar a lei e não entregou a menina nessa altura. «Só Maria Adelina e Luís Manuel são os culpados de a situação se ter arrastado», resume Jorge Soares, lamentando o enredo por saber que com cinco anos a menina já sofreu a dor da separação.

ANA RITA Leonardo tinha apenas 13 anos quando se viu com um recém-nascido ao colo, em Dezembro de 2006 – ela própria estava sinalizada numa comissão de protecção de crianças por se encontrar em situação de risco, de abandono escolar e sem família estruturada – e enfrentou a sentença da Segurança Social: a família não tinha condições de ficar com o Martim. Ana e o filho iriam viver em casa da mãe da jovem, recentemente separada do marido.

O pai do menino, Paulo Matos, então com 17 anos, não assumia a paternidade (fê-lo mais tarde, quando o filho tinha seis meses). A adolescente recusou desde o início ir viver com a criança para um centro de acolhimento para jovens mães. Perante tal cenário, a 26 de Fevereiro de 2007, as assistentes sociais de Cascais entregaram Martim ao Refúgio Aboim Ascensão, em Faro, onde vive desde os primeiros meses.

Em Julho de 2007 foi tomada a primeira decisão judicial indicando que o menino seria dado para adopção e, aqui, a família recorreu e foi bem sucedida. A 20 de Dezembro de 2008, porém, na última visita da mãe, Martim revelou sinais de ter ficado perturbado e cancelaram as visitas. A 21 de Maio deste ano informaram Ana Rita que o filho seria dado para adopção, e desde então a jovem luta para que a decisão seja anulada, levantada a inibição de poder paternal (que a impede, e a Paulo, de verem o filho) e revisto o processo de modo a que seja encontrado um novo projecto de vida para Martim e ele possa ser entregue em definitivo à família biológica.

Entretanto, o director do Refúgio Aboim Ascensão, Luís Villas-Boas, assinou um relatório clínico (que já deu entrada no Tribunal de Cascais) a recomendar que seja reavaliada a possibilidade de Ana Rita cuidar do bebé, bem como a disponibilidade da Segurança Social para uma nova leitura da situação à luz dos factos actuais. «Era um imperativo de consciência como psicólogo clínico, homem e pai, e pedi ao tribunal que fosse dilatado o prazo da adopção para se fazer isso», justificou o responsável pela instituição, confiante na capacidade de a adolescente desempenhar o seu papel de mãe.

«A situação que o tribunal avaliou em 2007 era a de uma mãe de 13 anos que não tinha condições emocionais nem materiais para tomar conta do filho.» Hoje, acredita, as coisas podem ter-se alterado: Ana Rita assegura estar mais madura, ter já uma casa com condições e estar a tirar um curso profissional. «Estou a estudar, falta menos de um ano para eu ir para estágio. E o Martim tem uma família muito grande à espera dele», afiança a jovem, rebatendo a via da adopção, agora suspensa. Desta reavaliação do processo do menino, da maturidade dos pais, do facto de o pai o ter perfilhado e das condições das famílias depende todo o desfecho.

QUASE SEMPRE a lei vai no sentido de manter as crianças com a mãe biológica e é nestas alturas que Ricardo Simões sente aquela pontada de injustiça por não lhe estar a ser dado o direito, também a ele, de ver a filha crescer um pouco mais todos os dias. Nunca a abandonou, não a renegou, tem emprego como produtor de espectáculos e um amor imenso, faz tudo por ela. Mas quando se separou da ex-companheira por divergências irreconciliáveis, ele que até então acreditava na felicidade, viu ser-lhe tirada a filha no momento em que a mãe da criança saiu de casa e a levou consigo, reservando para o pai umas escassas horas por semana.

«Quando registámos a nossa filha na conservatória ninguém me informou que podia logo entregar um acordo a estipular a guarda partilhada. A nossa separação, não sendo nós casados de facto, ditou que seria a mãe a ficar com ela [no caso dos não-casados, à altura, a guarda presumia-se da mãe e o pai tinha que provar em tribunal ter condições para assumir a guarda, partilhada ou não]», explica Ricardo, atónito com o «desenrolar absurdo» que se seguiu a dado momento do conflito. Alegando ser o melhor para o bem-estar da menina, a sua ex-companheira foi viver para o Porto e levou-a, juntamente com a proximidade do pai, a cumplicidade entre ambos, o sorriso.

«Já pagava voluntariamente uma pensão de alimentos acima das minhas possibilidades porque a minha filha é tudo o que me importa. Mas com esta mudança ainda gastava mais trezentos euros só nas viagens e estadas quinzenais (era sempre eu que me deslocava para ir vê-la) e não podia ir ao Porto todos os dias.»

RICARDO SIMÕES foi penalizado por ser homem, impotente contra uma lei que permite que as mães ponham em causa a estabilidade emocional das crianças sem freio nem critério. Nesta altura da sua vida procurou o apoio da Pais Para Sempre, um organismo não-governamental de âmbito nacional que tem por objectivo assegurar às crianças e aos pais a regularidade, o significado e a continuidade dos contactos dos filhos com os seus dois pais e a restante família. A ela acorrem sobretudo homens, por serem os mais prejudicados na altura de os tribunais atribuírem a guarda das crianças.

«Os tribunais tomam decisões com base no sexo dos progenitores e não em avaliações autênticas da situação. São autênticos mandados de captura em branco», critica Fernando Sequeira, outro pai que luta pelo direito de ver a filha e deu força à causa da Pais Para Sempre por não suportar que se impeça um homem de participar nas necessidades físicas, emocionais e educacionais do(s) próprio(s) filho(s).

No caso de Ricardo, e após uma temporada no Porto em que se incompatibilizou com os parentes do Norte e não se adaptou ao ambiente social e cultural onde cresceu, a ex-companheira voltou a Lisboa invocando novamente «os interesses da filha» e pediu-lhe ajuda para se instalar. «Ficou um mês em minha casa até arranjar um espaço dela, passámos os três férias juntos e parecia que nos estávamos a dar melhor até ela voltar a tentar afastar-me da nossa filha, uns cinco meses mais tarde», conta. Foi a gota de água que o fez voltar a reger-se pelo acordo inicial, sem novas tentativas de entendimento amigável.

«Estou a fazer um documentário sobre alienação parental no âmbito da Pais Para Sempre – vamos começar as filmagens em Setembro – e o juiz que acompanha o meu caso, ao falar da parte processual num debate na Ordem dos Advogados sobre a Lei do Divórcio, referiu que a regra aplicada pelos magistrados no meu caso em concreto parecia não ter funcionado», adianta Ricardo de olhos postos no futuro, esperançado. Do mesmo modo que o juiz do seu caso acabou por fazer um percurso intelectual importante nos últimos anos, no sentido de uma melhor percepção da igualdade de direitos de ambos os progenitores em relação à criança, o documentário poderá ajudar a que mais magistrados se sensibilizem. «Um dia as coisas vão ter de mudar», diz. O amor de um pai pode mais do que qualquer receio.


Guerra de nervos também para Madonna

As batalhas de emoções são universais, transversais e não escolhem contendores, e a prová-lo está o esforço de Madonna para conseguir adoptar a pequena Chifundo James (que quer rebaptizar com o nome de Mercy), de quatro anos e natural do Malawi.

A última sentença do Tribunal aprovou a adopção da criança pela cantora, mas durante muito tempo o processo esteve parado porque o mesmo órgão recusou o pedido de Madonna (que já tem outros filhos de sangue e adoptados, um dos quais precisamente do Malawi), alegando que o processo de adopção exigia que os novos pais residissem naquele país africano durante um período de dois anos.

Para tal dificuldade muito terá contribuído a oposição do pai biológico de Mercy, que entretanto interveio no processo a dizer que queria ser ele a criá-la e apresentando provas de que tinha condições económicas para o fazer. Mercy, entregue a uma instituição de acolhimento depois da morte da mãe (oito dias após o parto), não conhece o pai biológico. A família materna afastou-as a ambas da localidade onde vivia o pai da criança logo que soube da gravidez da mãe de Mercy com um homem com quem não era casada. O pai biológico alega agora nunca ter tomado conta da filha por ter sido sempre impedido de visitá-la.

http://w3.dn.pt/revistas/ns/interior.aspx?content_id=1302630

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