*Soraya Fleischer*
Antropóloga e assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria
(Cfemea)
*Kauara Rodrigues*
Cientista política e assessora técnica do Cfemea
Antropóloga e assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria
(Cfemea)
*Kauara Rodrigues*
Cientista política e assessora técnica do Cfemea
A primeira reação da população, da mídia e dos operadores do direito foi condenar Farlúcia Rodrigues da Cruz por ter "abandonado" o filho num prédio da alta classe média em Brasília há uma semana. Passado o calor da hora, precisamos de mais reflexão sobre o caso. Embora tenha ficado no epicentro da notícia, Farlúcia está longe de ser a única envolvida na situação.
Nos últimos tempos, foram vários os casos de bebês abandonados no país. É quase um fenômeno social. E o ocorrido em Brasília só ilustra uma realidade muito mais complexa e geral. Quando tais fatos são noticiados ou passados de boca em boca, há predileção por detalhes sórdidos e pela demonização das mulheres. "O bebê foi deixado numa mata fechada e apresentava picadas de
Nos últimos tempos, foram vários os casos de bebês abandonados no país. É quase um fenômeno social. E o ocorrido em Brasília só ilustra uma realidade muito mais complexa e geral. Quando tais fatos são noticiados ou passados de boca em boca, há predileção por detalhes sórdidos e pela demonização das mulheres. "O bebê foi deixado numa mata fechada e apresentava picadas de
A ênfase maior está na situação de abandono e não no contexto do abandono.
Vale a pena levantar questões que contextualizam os recentes episódios.
As crianças têm sido deixadas em lugares públicos. A grande circulação de pessoas e, ao mesmo tempo, o fato de não levantar suspeitas imediatas explicam a preferência por esses locais. As mulheres percebem que, com grande probabilidade, o filho será encontrado rapidamente. Procuram o anonimato para evitar o estigma e a condenação dirigidos, rapidamente,
Assim como no caso de Farlúcia, os homens geralmente estiveram ausentes na gravidez, no parto e na decisão de não ficar com a criança. Com o "abandono" do bebê, eles ressurgem rapidamente e condenam a mulher por "esconder" gravidez, parto e criança; difamam a reputação da genitora como mulher e mãe; e lutam pela guarda da criança. No final, tornam-se participantes assépticos e, acima de tudo, heróicos.
Os meios de comunicação, por sua vez, não detalham as circunstâncias, as razões, a situação dos serviços de saúde reprodutiva nos hospitais e do sistema de adoção no país. O foco das matérias é apenas o bem-estar da criança. Ao que parece há atores do bem e do mal. A mulher abandona, a
criança sofre. A mãe se ausenta, um vigia do bloco vira protagonista. A mãe não quer o filho, o homem assume a guarda. A mulher toma outra decisão que não a maternidade, a Justiça a joga na cadeia. A mídia, em vez de tratar essas mulheres como interlocutoras legítimas, tem ajudado a transformá-las em mais um "outro" monstruoso. E, assim, o silêncio permanece duplo:
No âmbito judicial, há celeridade da polícia e da Justiça, conhecidamente morosas, para encontrar e condenar as mulheres. Parece haver algum intuito didático e repressor nessas medidas. Talvez seja uma "transgressão" contagiosa demais. Como seria o Brasil se as mulheres pudessem decidir, realmente, o rumo da própria vida reprodutiva?
O foco dessas recorrentes histórias não deve ser apenas o "abandono". É preciso pensar sobre como nós temos tratado as mulheres, que geram e criam nossos cidadãos. É melhor doar um filho a uma família com mais chances de o desejar e educar ou criá-lo sozinha, sob todas as penas do sacrifício? Há, desde o início da vida sexual, informação suficiente e eficiente para tomar decisões reprodutivas? As mulheres conseguem negociar com os parceiros o uso de métodos contraceptivos?
Durante a gravidez, empregadores permitem que elas saiam do trabalho para cumprir as consultas pré-natais e garantem a estabilidade empregatícia dos companheiros? Se tivéssemos leis para interromper a gravidez de forma voluntária, responsável e segura no SUS, muitas não teriam optado por essa alternativa, em vez de levar adiante gestações indesejadas e socialmente inviáveis? E depois que nascem os bebês, temos oferecido condições para que a mãe tenha resguardo, licença-maternidade, creche onde deixar o filho, empregos decentes?
O alarde criado nos casos de "abandono de incapaz" só reflete nossa saída rápida e hipócrita que pune apenas as mulheres e esquece que gerar e criar filhos são tarefas que envolvem outros responsáveis. O que se vê é que, em nosso país, não há uma infra-estrutura ampla e pública para a maternidade voluntária. Sugerimos que seja essa a utopia a perseguir.
*artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 4/4/2008*
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