domingo, 6 de abril de 2008

*Quem abandonou Farlúcia?* (Brasil)

*Soraya Fleischer*
Antropóloga e assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria
(Cfemea)

*Kauara Rodrigues*
Cientista política e assessora técnica do Cfemea

A primeira reação da população, da mídia e dos operadores do direito foi condenar Farlúcia Rodrigues da Cruz por ter "abandonado" o filho num prédio da alta classe média em Brasília há uma semana. Passado o calor da hora, precisamos de mais reflexão sobre o caso. Embora tenha ficado no epicentro da notícia, Farlúcia está longe de ser a única envolvida na situação.

Nos últimos tempos, foram vários os casos de bebês abandonados no país. É quase um fenômeno social. E o ocorrido em Brasília só ilustra uma realidade muito mais complexa e geral. Quando tais fatos são noticiados ou passados de boca em boca, há predileção por detalhes sórdidos e pela demonização das mulheres. "O bebê foi deixado numa mata fechada e apresentava picadas de
formiga por todo o corpo", "o menino estava próximo de entulhos e ratos", "era a noite mais fria do ano", "mulher abandona bebê e nem olha para trás".
A ênfase maior está na situação de abandono e não no contexto do abandono.
Vale a pena levantar questões que contextualizam os recentes episódios.

As crianças têm sido deixadas em lugares públicos. A grande circulação de pessoas e, ao mesmo tempo, o fato de não levantar suspeitas imediatas explicam a preferência por esses locais. As mulheres percebem que, com grande probabilidade, o filho será encontrado rapidamente. Procuram o anonimato para evitar o estigma e a condenação dirigidos, rapidamente,
àquelas que abdicam da maternidade. Mas a maternidade não ocorre somente por vontade da mulher. Há também outros atores dos quais precisamos nos lembrar.


Assim como no caso de Farlúcia, os homens geralmente estiveram ausentes na gravidez, no parto e na decisão de não ficar com a criança. Com o "abandono" do bebê, eles ressurgem rapidamente e condenam a mulher por "esconder" gravidez, parto e criança; difamam a reputação da genitora como mulher e mãe; e lutam pela guarda da criança. No final, tornam-se participantes assépticos e, acima de tudo, heróicos.

Os meios de comunicação, por sua vez, não detalham as circunstâncias, as razões, a situação dos serviços de saúde reprodutiva nos hospitais e do sistema de adoção no país. O foco das matérias é apenas o bem-estar da criança. Ao que parece há atores do bem e do mal. A mulher abandona, a
criança sofre. A mãe se ausenta, um vigia do bloco vira protagonista. A mãe não quer o filho, o homem assume a guarda. A mulher toma outra decisão que não a maternidade, a Justiça a joga na cadeia. A mídia, em vez de tratar essas mulheres como interlocutoras legítimas, tem ajudado a transformá-las em mais um "outro" monstruoso. E, assim, o silêncio permanece duplo:
primeiro, ela passa sozinha por todo o processo e, depois, quando o caso vem a público, novamente sua voz e sofrimento são calados.

No âmbito judicial, há celeridade da polícia e da Justiça, conhecidamente morosas, para encontrar e condenar as mulheres. Parece haver algum intuito didático e repressor nessas medidas. Talvez seja uma "transgressão" contagiosa demais. Como seria o Brasil se as mulheres pudessem decidir, realmente, o rumo da própria vida reprodutiva?

O foco dessas recorrentes histórias não deve ser apenas o "abandono". É preciso pensar sobre como nós temos tratado as mulheres, que geram e criam nossos cidadãos. É melhor doar um filho a uma família com mais chances de o desejar e educar ou criá-lo sozinha, sob todas as penas do sacrifício? Há, desde o início da vida sexual, informação suficiente e eficiente para tomar decisões reprodutivas? As mulheres conseguem negociar com os parceiros o uso de métodos contraceptivos?

Durante a gravidez, empregadores permitem que elas saiam do trabalho para cumprir as consultas pré-natais e garantem a estabilidade empregatícia dos companheiros? Se tivéssemos leis para interromper a gravidez de forma voluntária, responsável e segura no SUS, muitas não teriam optado por essa alternativa, em vez de levar adiante gestações indesejadas e socialmente inviáveis? E depois que nascem os bebês, temos oferecido condições para que a mãe tenha resguardo, licença-maternidade, creche onde deixar o filho, empregos decentes?

O alarde criado nos casos de "abandono de incapaz" só reflete nossa saída rápida e hipócrita que pune apenas as mulheres e esquece que gerar e criar filhos são tarefas que envolvem outros responsáveis. O que se vê é que, em nosso país, não há uma infra-estrutura ampla e pública para a maternidade voluntária. Sugerimos que seja essa a utopia a perseguir.


*artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 4/4/2008*

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