Crise leva a maior número de crianças subnutridas em tribunais
Mais casos de negligência parental “Podemos afirmar que existe uma forte corrente de opinião que entende que deve ser reconhecida à paternidade sócio-afectiva a mesma importância que a paternidade biológica”, diz o juiz
Crise leva a tribunal crianças subnutridas
JORNAL da MADEIRA - Considera que o quadro legislativo português protege efectiva e eficazmente as nossas crianças?
MÁRIO SILVA - O sistema legal português de promoção e protecção de crianças e jovens é globalmente adequado, sem prejuízo, naturalmente, da sua permanente avaliação e correcção, tendo em conta os aperfeiçoamentos que sejam ditados pela dinâmica social e familiar. Entendo que não se justifica por ora grandes alterações legislativas. Há que apostar no reforço dos meios humanos e materiais, nomeadamente criando assessorias internas nos tribunais de família e de menores, a par das assessorias externas. No âmbito das responsabilidades parentais, há a necessidade de criar os chamados “pontos de encontro”, coordenados por pessoal técnico, destinados a facilitar os convívios entre as crianças e os familiares e que na maior parte dos países da Europa funcionam todos os dias. A sua implementação é imprescindível para acabar ou pelo menos diminuir o “drama das visitas”. Há ainda que criar gabinetes de orientação familiar, de terapia familiar e de mediação familiar.
JM - Temos assistido a vários casos mediáticos, despoletados por decisões judiciais polémicas. Verifica-se que, sobre certos processos e dada a tremenda carga emocional que os acompanha, a sociedade portuguesa se divide quanto à decisão da entrega da guarda. Isso aconteceu no "caso Esmeralda" e agora no processo da menina Alexandra, ambos com a decisão final a ser a entrega à família biológica. Ainda que não possa pronunciar-se sobre processos concretos, pergunto-lhe se não estaremos excessivamente presos ao princípio de que a "melhor solução" é sempre a família biológica?
MS - A Constituição da República Portuguesa estabelece que os pais têm o direito e dever de educação e manutenção dos filhos e que os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e mediante decisão judicial (artigo 36º, nºs 5 e 6). Segundo a Convenção Sobre os Direitos da Criança “Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse da criança” (artigo 3º). O conceito de superior interesse da criança está presente, a partir da Convenção, no edifício legislativo português, como no Código Civil e na Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Risco, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro. Assim, no artigo 4º desta última lei, onde estão definidos os princípios orientadores da intervenção, logo se assinala na alínea a) que “a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”. Este interesse prende-se com uma série de factores atinentes à situação concreta da criança que devem ser ponderados à luz do sistema de referências que hoje vigora na nossa sociedade, sobre as necessidades do menor, as condições materiais, sociais, morais e psicológicas adequadas ao seu desenvolvimento estável e equilibrado e ao seu bem estar material e moral.
Forte corrente de opinião defende reconhecimento igual entre pais
Considerada a complexidade do conceito, importa assim convocar na análise de cada caso os diversos saberes, fazendo-se um apelo às ciências sociais, nomeadamente da psicologia para o preenchimento do seu conteúdo. Por sua vez, tem sido jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que os direitos parentais não podem ser exercidos à custa da criança, não envolvendo, por isso, a desintegração das crianças da família afectiva em que se encontram, nem direitos de visita coercivos dos pais biológicos. Os direitos dos pais cessam quando começam os direitos da criança ao livre desenvolvimento, ao bem-estar psicológico e à estabilidade. Hoje em dia, podemos afirmar que existe uma forte corrente de opinião que entende que deve ser reconhecida à paternidade sócio-afectiva a mesma importância que a paternidade biológica. Bem a propósito, destaco a iniciativa recente do Instituto de Apoio à Criança de elaborar um documento, subscrita por várias personalidades, e que chama a atenção para a necessidade de concretizar melhor na lei o conceito de superior interesse da criança, bem como introduzir o direito à preservação de relações afectivas.
JM - Quais as razões mais comuns que obrigam a intervenção do Tribunal de Família e Menores do Funchal nos processos envolvendo crianças?
MS - O maior número de processos pendentes no Tribunal de Família e de Menores da Comarca do Funchal dizem respeito à regulação das responsabilidades parentais em que se discute a guarda, o exercício das responsabilidades parentais, o direito de visitas e a pensão de alimentos. Existem 344 processos de regulação das responsabilidades parentais e 453 processos de alteração/incumprimento de regulação das responsabilidades parentais. Seguem-se os processos de promoção e protecção (118) que têm como fundamento uma eventual situação de perigo ou risco de perigo para uma criança. As situações mais comuns são as de negligência na prestação aos filhos de cuidados básicos ao nível da alimentação, higiene, segurança e saúde. Existem também vários casos de abstenção escolar e de maus-tratos.
Fase judicial na adopção «é necessariamente célere»
JM - Os processos de adopção são comummente conhecidos por serem excessivamente lentos. Entre o momento de entrada até à decisão final, quanto tempo demora o Tribunal de Família e Menores a decidir?
MS - Os processos de adopção são constituídos em regra por duas fases: uma fase administrativa e uma fase judicial. A primeira inicia-se com a apresentação de uma candidatura à entidade competente, que no caso da Região Autónoma da Madeira é o Centro de Segurança Social da Madeira. Este procede ao estudo da pretensão do candidato a adoptante no prazo de seis meses o qual deverá incidir, nomeadamente sobre a personalidade, a saúde e a idoneidade para criar e educar o menor e a situação familiar e económica do candidato a adoptante e as razões determinantes do pedido de adopção. Concluído o estudo é emitida decisão sobre a candidatura. O candidato, que tiver sido seleccionado, fica a aguardar que lhe seja apresentada proposta de criança a adoptar. Após apresentação desta proposta, segue-se um período que tem por objectivo o conhecimento e aceitação mútuos entre a criança e o candidato a adoptante. Concluída, favoravelmente, esta fase, a criança é confiada ao candidato a adoptante, ficando a situação de pré-adopção por um período não superior a seis meses, durante o qual a entidade competente procede ao acompanhamento e avaliação da situação. Verificadas as condições para ser requerida a adopção é elaborado relatório que é remetido ao candidato. A segunda fase inicia-se com a apresentação da petição inicial na secretaria do Tribunal de Família e de Menores da área de residência do adoptando. Recebida a petição inicial, acompanhada dos documentos previstos na lei, o juiz procede às diligências requeridas ou ordenadas oficiosamente. Após parecer do Ministério Público, o juiz profere decisão, decretando, ou não a adopção, conforme estejam ou não demonstrados os necessários pressupostos legais. A adopção tem carácter urgente e uma tramitação simplificada, pelo que na fase judicial é necessariamente célere.
Juiz lamenta rejeição do Dia Nacional da Adopção
JM - No processo de adopção, o que faz demorar mais o processo?
MS - Os principais problemas de ordem prática surgem na chamada fase instrumental da adopção em que se decide sobre a adoptabilidade da criança. Com vista a futura adopção, o tribunal pode confiar o menor a casal, a pessoa singular ou a instituição nas seguintes situações: se o menor for filho de pais incógnitos ou falecido; se tiver havido consentimento prévio para a adopção; se os pais tiveram abandonado o menor; se os pais, por omissão, mesmo que por manifestamente incapacidade devida a razões de doença mental, puseram em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor; e se os pais do menor acolhido por um particular ou por uma instituição tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança. A confiança com fundamento nas situações previstas nas citadas alíneas anteriores não pode ser decidida se o menor se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aqueles familiares ou tutor puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação ou a educação do menor ou se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse do menor. Com excepção das situações de filhos de pais incógnitos ou falecidos, de prestação de consentimento prévio para a adopção e de abandono, as restantes situações implicam em regra a elaboração de informações, relatórios e inquéritos sociais; avaliações das competências parentais, avaliações pedopsiquiátricas, exames psiquiátricos, etc. Ora, como os tribunais não dispõem de assessorias internas, estas solicitações têm de ser dirigidas a outras entidades, como a segurança social, os hospitais, o Instituto de Medicina Legal, os centros de Saúde, os centros de tratamento de toxicodependência e de alcoolismo, as instituições de acolhimento e as entidades com competência em matéria de atribuição de casas de habitação social, etc. Há casos em que se torna também necessário a colaboração das autoridades policiais com vista a apurar as residências dos progenitores e a sua situação económica e profissional. Em suma, as decisões judiciais são o culminar de um longo processo de colaboração e articulação com entidades externas ao tribunal que necessariamente demoram tempo a responder às solicitações, pelo que posso afirmar com segurança que não é justo imputar em muitas situações a morosidade dos processos ao funcionamento interno dos tribunais. Acresce dizer, que se verificam muitos casos de crianças em situação de adoptabilidade e que não são adoptadas porque não correspondem às características pretendidas pelos candidatos à adopção. A este propósito não posso deixar de lamentar que a petição para instituir o Dia Nacional da Adopção com mais de 5.000 peticionários tenha sido rejeitado na sessão plenária da Assembleia da República de 15 de Abril de 2009. Tratava-se de uma iniciativa importante que iria dar uma outra visibilidade pública ao instituto da adopção.
JM - É correcto dizer-se que os pais madeirenses se tornaram mais negligentes nos últimos anos?
MS - O alargamento da escolaridade (sobretudo da pré-escolar), o aumento do número de técnicos no terreno, uma maior consciência social acerca dos direitos das crianças e dos jovens, assim como uma maior exigência social na prestação de cuidados básicos às crianças, ao nível da alimentação, higiene, segurança, formação e desenvolvimento contribuíram decisivamente para que tenha verificado nos últimos anos um aumento do número de casos sinalizados de negligência parental.
JM - Os casos de maus-tratos continuam a ser um flagelo na nossa sociedade. Que mais pode ser feito para fazê-los diminuir?
MS - As condições de pobreza, as más condições habitacionais e a superlotação, a baixa instrução escolar, a existência de promiscuidade e um estilo de vida desorganizado favorecem o aparecimento dos maus-tratos. Trata-se de um problema que exige estratégias de intervenção multidisciplinar, sistémica e que têm de actuar sobre a família e a sociedade em geral. Neste contexto, a prevenção tem que assumir um papel essencial. A título meramente exemplificativo realço as seguintes medidas: é necessário melhorar a qualidade de vida das famílias/indivíduos; investir numa educação de qualidade; criar e expandir as redes de apoio social; implementar programas de educação sexual; melhorar as competências parentais e as relações intrafamiliares; desenvolver programas de formação dirigidos aos pais, acerca do desenvolvimento infantil e as respectivas exigências de maternidade e paternidade e privilegiar o papel da escola como espaço desencadeador de experiências positivas.
Crise deverá aumentar casos de subnutrição no tribunal
JM - Tal como se assistiu no continente, também na Madeira deram entrada no tribunal casos envolvendo crianças internadas nas unidades de saúde, durante as férias escolares, por estarem subnutridas?
MS - A carência alimentar nas crianças e jovens está normalmente associado à negligência parental, constituindo muitas das vezes uma forma de mau-trato infantil, daí que esteja na origem da instauração de alguns processos de promoção e protecção. Já foram detectados vários casos de subnutrição, assim como de obesidade infantil, decorrentes de maus hábitos alimentares, cujo número se prevê que aumente, com a crise económica.
JM - Que mensagem deixa no Dia da Criança?
MS - Finalizo, deixando à reflexão neste Dia Mundial da Criança as seguintes frases: “As asneiras dos pais deixam nódoas difíceis nos filhos que podem levar uma vida inteira a reparar” (Eduardo Sá), e “Mas o melhor mundo são as crianças” (Fernando Pessoa).
O juiz Mário Silva defende que o “bullying”, que é a prática de actos de violência física ou psicológica, intencionais ou repetidos praticados por um indivíduo (ou grupo de indivíduos) com o objectivo de intimidar ou agredir outro indivíduo (ou grupo de indivíduos) incapaz(es) de se defender, deveria ser um crime específico. Segundo o ordenamento legal português, os casos de “bullying” podem eventualmente ser enquadrados nos crimes de ofensa à integridade física e de ameaça. «Atendendo, porém, às consequências graves nas vítimas, entendo que se justificaria a criação de um tipo legal específico de crime», referiu o magistrado judicial. Por outro lado, continuou, «seria importante que se consagrasse a obrigatoriedade de intervenção tutelar em todos os casos de “bullying” e de violência escolar, em que os seus autores têm menos de 16 anos de idade, independentemente de queixa dos ofendidos».
Alberto Pita
http://www.jornaldamadeira.pt/not2008.php?Seccao=17&id=125101&data=2009-06-01